Tal como no ano passado, vou demorar bastante tempo a escrever este post. Se por um lado as emoções estão ainda todas à flor da pele, por outro lado ainda me dói a mão esquerda graças ao senhor - um dos muitos, diga-se - que estava a apoiar os atletas à beira da estrada ali por volta do km 37/38. Ele aplaudia e eu, como fiz com outros espectadores activos, estiquei-lhe a mão para lhe dar 5. Ele não só deu 5 como me agarrou a mão com toda a força enquanto gritava o meu nome e o do colega que ia ao meu lado e nos chamava de campeões e dizia que estávamos quase a acabar. E isto prolongou-se por o que me pareceu uns bons 500 metros. Ele parado no passeio a agarrar-me a mão e eu a correr e a deixá-la - juntamente com o resto do braço - para trás. Eventualmente consegui ir lá buscá-la.
Mas como esta Maratona parecia estar enguiçada na 6a feira começou a desenhar-se outro contratempo que se veio a confirmar no sábado de manhã. A partida foi adiada das 9:00 para as 10:30 e arranquei incompleto rumo ao Porto na companhia de um colega de equipa - estreante na prova - e da namorada. E lá fomos... Tendo já a experiência do ano anterior acabei por ser o cicerone e definir eu os passos a dar. Primeira paragem: Alfândega do Porto.
Assim que entrámos damos de caras com o outro maratonista da equipa que tinha ido de autocarro e que estava de saída depois de já ter almoçado. Segundos depois chega o quarto elemento da equipa, o que ia fazer a Family Race. Combinado não tinha corrido melhor e deu para tirarmos algumas fotos de equipa ali. Levantar os dorsais foi bastante fácil e todo o espaço está muito bem organizado, algo que não me surpreendeu. E isto começou a deixá-los muito entusiasmados. Comentavam comigo que ali se vivia e respirava desporto, se sentia um ambiente único e que toda a gente caminhava orgulhosa de saco e dorsal nas mãos como se estivessem a preparar-se para vencer a prova. Foi o primeiro embate com a grandeza e a emoção da Maratona.
A Pasta Party também foi novidade para mim porque não tinha lá estado em 2016 e cumpriu a 100% com as expectativas. Fosse pelo adiantado da hora ou pela qualidade e quantidade do repasto, ficámos muito satisfeitos e cheios de hidratos de carbono. Pelo meio fomos vendo o que oferecia a Feira da Maratona, recebemos uns brindes e ainda deu para me cruzar com alguns amigos, mas muitos outros ficaram por encontrar nesta altura. Era hora de rumar a outras paragens: eu para o hotel em Matosinhos, eles para casa de um amigo no Porto.
Foi nesta altura que tentei não ficar deprimido. No ano passado esta parte do fim de semana foi passada com imensa companhia, no sábado fiquei sozinho. Até no hotel acharam estranho! Check-in feito foi altura para descansar um pouco e preparar as coisas para o dia seguinte. Notei então que na mochila não estava o meu mini envelope onde guardo os alfinetes de dama e quando levantei o dorsal não tirei nenhuns. Felizmente tinha os Go Grip que foram oferecidos na Scalabis e desta vez até achei muito mais simples colocá-los. Mini stress resolvido. Apesar de ter almoçado tarde decidi que ia jantar relativamente cedo. Antes disso dei uma volta pela cidade a tentar recordar-me das ruas e acabei por jantar um belo peixe assado antes de percorrer a zona junto à praia de Matosinhos rumo à rotunda da Anémona. Foi ali que tirei um momento de reflexão, à luz da lua, enquanto conversava com quem estava à distância e com quem ia fazer a prova no dia seguinte. Sozinho, mas sempre acompanhado dentro do possível.
Na manhã seguinte cheguei bem cedo ao pequeno almoço e como era de esperar encontrei outros atletas e rapidamente metemos conversa uns com os outros. A boa disposição reinava. O meu colega de equipa avisou-me que já estava próximo da partida e lá fui eu ter com ele. Últimos detalhes, um ligeiro engano porque entrámos na onda da Family Race mas rapidamente fomos para o sítio certo. Antes das últimas despedidas perguntei à namorada dele se ela estava pronta. Disse-me que sim, que ia procurar uma esplanada e que seria muito tranquilo ficar à nossa espera. Ela nem tinha noção do que seriam as próximas horas. E lá vamos nós, por capítulos novamente.
Capítulo 1 - dos 0 aos 12kms
Mesmo antes da partida vi umas camisolas familiares e ainda consegui rapidamente cumprimentar o
Carlos o que fez com que perdesse momentaneamente de vista o meu colega. Encontrei-o à passagem do primeiro km ao mesmo tempo que vi o nosso outro colega dos 15km. Fomos todos juntos e isso ajudou imenso a passar esta fase inicial. Não havia nervos, havia boa disposição e um lema que ele gritava de vez em quando: "Hoje ninguém desiste!" Também foi bom vermos caras conhecidas nos primeiros retornos. Era um mar de gente ainda atrás de nós e uma moldura humana enorme a apoiar. Ele também gritava "Façam baruuulhoooooooo!" e acabou por perceber que - palavras dele - fez a prova com alguém que ainda faz mais barulho que ele. Ah pois é, a partir de certa altura quem puxava pelo público - mesmo sem ser preciso - era eu.
Não tínhamos combinado nenhuma estratégia. Ele - algo ingenuamente - disse-me que podia ajudar-me a manter o ritmo até meio da prova para eu depois seguir sozinho. Também dizia que queria chegar aos 35km em 5 horas o que lhe deixava uma hora para fazer o resto a caminhar. Eu a única vez que falei de tempos foi quando vimos a bandeira das 4h30m atrás de nós num retorno e lhe disse que era porreiro não deixarmos que eles nos apanhassem. E assim fomos os três até aos 12km. Só havia uma breve separação nos abastecimentos e a seguir reagrupávamos. Ao chegar à rotunda da Anémona a namorada dele lá estava pronta para umas fotos e foi um bom bocado a correr por fora do gradeamento para nos apanhar. Decidimos abrandar e demos um grande abraço de grupo antes da separação das provas. O nosso colega dos 15km ia muito bem e em homenagem à nossa companhia fez a parte dele nos kms finais e manteve o ritmo que íamos a fazer.
Capítulo 2 - dos 12kms aos 21kms
Eu não queria repetir o texto de 2016, mas a verdade é que há muitas semelhanças. A partir dos 12km começa outra aventura e lá não há "misturas" entre atletas que competem por objectivos diferentes. O volume de apoio na estrada também é menor, mas mantém-se constante e volta a atingir um pico ao chegar à Ponte Dom Luiz. Dei por mim a dar-lhe imensas das dicas que tinha recebido em 2016 e ele ia ouvindo com muita atenção tal como eu o tinha feito na altura. Senti-me bem com isso. Disse a um espectador que estava no passeio para não sair dali que nós íamos só até à Afurada e já voltávamos. O ritmo mantinha-se estável, ambos tranquilos, nem sempre muito conversadores entre nós mas a apreciar tudo à nossa volta e a interagir qb com outros atletas que também se metiam connosco. Rimos com alguns cartazes de apoio mais personalizados e aguardávamos por ver os primeiros classificados a passar em sentido contrário. Quando isso aconteceu deu para perceber que o eventual vencedor tinha uma distância brutal para o segundo classificado. Nos retornos em Matosinhos também fiz questão de dar força à malta do Correr Lisboa que via do outro lado e também havia uma claque à beira da estrada nesta zona. A certa altura íamos lado a lado e ele desvia-se para deixar passar uma atleta pelo meio de nós. Ela muito timidamente disse que não queria passar, estava só a aproveitar o nosso ritmo. Pediu desculpa e depois sim passou por nós. Mal sabíamos que ainda haveríamos de fazer mais de 10km juntos. Ontem tínhamos feito esta zona de carro e dizia-me ele que o reconhecimento do percurso estava a ajudar. Porreiro. Também me ri quando passamos pelo primeiro abastecimento em que havia esponjas: "Esponjas? O N. disse-me que não, portanto não!"
Na passagem pela ponte peço palmas e alguém grita o meu nome - lido no dorsal - e depois grita o meu nome completo - lido nas costas da camisola. É disto que eu gosto.
E toca a fazer mais barulho que hoje ninguém desiste!
Apesar deste lema à passagem dos 21km - em 2:07:30 - ele diz-me para eu seguir que ele ia começar a correr mais lento a 6 e qualquer coisa. E eu segui pela primeira vez sem o meu companheiro de aventura.
Capítulo 3 - dos 21km aos 32km
Nem 500 metros depois ele aparece ao meu lado. E ao nosso lado está também uma cara familiar: a Natasha que há uns quilómetros atrás nos tinha ultrapassado. Lá se quebrou o gelo e ela perguntou se não nos importávamos de a ter ali. Claro que não. "Vamos a um ritmo tranquilo, vem connosco!" dizia ele. E veio. Em conversa disse que estava a fazer a primeira maratona e que tinha receio de estar a dar um passo maior que a perna. Curiosamente ele falou mais que eu sempre no sentido de a acalmar e de lhe dizer que "hoje ninguém desiste"!
Do lado de Gaia o empedrado é uma chatice e muitos tentamos fugir para o passeio sempre que possível. É claramente a zona mais complicada em termos de piso e é desgastante quando já vamos com metade da prova nas pernas. Eu comecei a sentir o vento frio e desesperava por qualquer raio de sol por mais ínfimo que fosse. Fora o vento a temperatura esteve bastante agradável a rondar os 15 ou 16 graus mas nas zonas de sombra a diferença notava-se. Do lado de lá da estrada passava o nosso maratonista-quase-queniano/etíope que se mantinha estável à frente dos marcadores de ritmo das 3h30m. Um high-5 e uma rápidas trocas de palavras de incentivo. Nesta altura já só pensava em sair dali e voltar ao outro lado do rio e aqueles quilómetros custaram bastante. Ainda me cruzei também com o
João Lima e mais à frente com os restantes membros dos 4 ao KM: a Isa (primeiro) e o Vítor (depois). Penso que havia outro elemento em prova, mas não me cruzei com ele ou não o reconheci. Também o João me deu palavras de ânimo e disse-me que eu ia com bom andamento.
De facto, só fiquei um pouco para trás mesmo antes de sairmos de Gaia numa altura em que tomei o segundo - e último - gel. Foi um pelos 16km e outro pelos 28km. Tinha em mente um último aos 35km mas prescindi dele. Logo a seguir já estava à frente do duo dinâmico de estreantes que foi a certa altura a marcar o ritmo à minha frente. Que fique registado que toda a prova foi feita em total entre-ajuda e a única vantagem que eu tinha era a experiência de já ter completado uma Maratona e consegui reagir de forma mais ponderada em alguns momentos de maior quebra, daí que depois da ponte já estivesse eu novamente à frente a tentar puxar por eles. Só depois do abastecimento dos 30km me apercebi que já éramos quatro. A nossa companheira de viagem tinha um amigo à espera dela após a travessia da ponte para o lado do Porto. Pelo que nos disseram ele não faz mais que 20km portanto ficou decidido que ele a iria acompanhar dali até ao final da prova. E lá fomos os quatro até aos 32km. "Agora é um treininho até à meta!"
Capítulo 4 - dos 32kms aos 42km
A passagem pelo túnel da Ribeira é um marco da prova. Ali vamos com 32km mais coisa menos coisa. Lá dentro temos várias televisões e colunas a bombar música inspiradora, no caso a theme song do filme Chariots of Fire. Aproximei-me das imagens e tentar absorver aquele momento para me dar força para a parte final da prova. Pouco depois tivemos mesmo que caminhar pela primeira vez. No meu caso o problema nem eram as pernas, mas sim as costas. Estava com dores num misto de má postura provocada pelo cansaço com o vento frio a bater-me na camisola transpirada e que me causou umas pontadas. No caso dele eram mesmo as pernas que já estavam a dar as últimas. Passámos a adoptar definitivamente a estratégia de chegar ao próximo abastecimento e reavaliar a situação. Foi quando passa por nós o grupo que vinha com as bandeiras das 4h30m. Olhámos um para o outro e decidimos tentar ir atrás deles, algo que conseguimos durante um quilómetro, talvez. Eles seguiram à sua vida e nós continuámos até aos 35km. A paragem aqui terá sido mais longa do que o ideal. A mim não me custou mas a ele já foi mais difícil voltar a correr. O conselho de nunca parar mantém-se mas isto na teoria é sempre mais fácil, não é?
A partir daqui a estratégia foi correr um quilómetro e caminhar outro. Ou pelo menos caminhar o suficiente para recuperar energia. Foi também por causa disto que decidi que já nem valia a pena tomar um gel porque iria fazer parte do percurso até ao fim a andar. A certa altura vejo-o a coxear e pergunto-lhe se tinha começado só agora. "Achas? Eu já venho todo fodido desde lá de baixo, pá!" responde-me ele mas sempre a sorrir.
Eu via lá à frente um quarteto com camisolas do Correr Lisboa. Queria tentar apanhar essa boleia porque sabia que seria impecável para seguirmos até ao fim. Não deu, mas não fez mal. Nesta fase era só gerir o esforço, ambos concordámos que demorar mais 10 ou menos 10 minutos era secundário. E ele já tinha chegado aos 35km bem antes das 5 horas de prova, já estava feliz da vida por ter cumprido esse objectivo.
Daqui para a frente o pessoal à beira da estrada bem como os outros atletas que estavam na mesma luta que nós foram importantes para dar apoio, para motivar, para conversar um pouco. Aos 38km, já nem sei se antes ou depois do meu incidente com a mão, um outro senhor dizia que chegar aqui já era para campeões. E numa altura em que íamos a andar passam duas atletas que puxam por nós. Eu respondo que era poupança de esforço para caminharmos ali e correr mais próximo da meta onde toda a gente estava a ver! Ele já se estava a arrastar um bocado mas com estes momentos de interacção ia animando e rindo com os meus comentários. No final da prova uma coisa que ele disse invejar de forma salutar foi a quantidade de pessoas com quem falei e/ou que me reconheceram nos retornos. E também ele ganhava ânimo com isso e tomava a iniciativa de aumentarmos o passo.
Decisão final: caminhar até ao km 41 e correr no último. Já era eu que tinha que o mentalizar que a meta estava mesmo ali. E que a namorada dele estava lá à espera. E que para além disso tínhamos todo um grupo a seguir a nossa corrida na app e ansiosos por nos "ver" chegar ao final. Ele só acreditou nesta parte algumas horas depois. O forcing final também coincidiu com a passagem por uma claque do Correr Lisboa que estava à entrada do último quilómetro. Foi fantástico! Para além disso ele sabia que íamos terminar a subir, mas eu disse-lhe que podia ignorar esse parte porque do lado de fora das grades viria barulho suficiente para nos levar ao colo. Fiz questão de começar a pedir barulho logo ali e o melhor estava para vir quando vemos a namorada dele do lado de dentro do gradeamento a 500 metros do final, de telemóvel em punho a filmar-nos. Se ela tinha visto crianças, esposas e até animais de estimação a terminar com os atletas então quis fazer o mesmo. Não sei se o sprint maior foi o dela ou o nosso, mas só a 50 metros da meta é que ela não nos conseguiu acompanhar. Tempo suficiente para darmos um high-5 e um forte abraço antes de saltarmos para a meta e terminarmos a prova em êxtase total. Este final livrou-me de boa porque a minha ideia era tentar pegar no telemóvel e filmar eu em directo e sabia que isso significava um final em lágrimas. Assim o soluçar de choro ficou apenas do lado de lá da linha no telefonema que fiz segundos depois de acabar. Eu estava feliz, ele estava morto, ela estava mais eufórica que nós! E ainda nem sabíamos a versão dela que foi tudo menos tranquila.
O único momento calmo foi desde que nos viu passar aos 12km até estarmos na zona da Meia Maratona. Nessa altura as solicitações já eram tantas que ela estava entre a rede social e a app sem nunca tirar os olhos da estrada. E nós ainda tínhamos só entrado em Gaia e já lhe pediam notícias da meta! Gente louca esta que nos acompanhou - sem nunca deixar queimar o almoço - e que ainda teve tempo para fazer um treino de manhã. São os maiores! 42,195 obrigados! E alguns estarão no Porto para o ano, é certinho!
Depois disto vinham os momentos habituais, mas colocarem-nos a medalha ao pescoço foi o mais especial. Começámos e acabámos juntos e embora ele me tivesse dito algumas vezes nos quilómetros e até nos metros finais que eu podia e devia acelerar para ainda fazer um tempo melhor isso nunca me passou pela cabeça. A amizade aqui era o mais importante, tal como tinha acontecido comigo no ano anterior. E, já agora, recordo que na altura ter ficado sozinho foi a melhor opção!
Brindes recebidos e o ponto alto da gravação da medalha - ambas as medalhas neste caso. Não sei se ele vai voltar a fazer uma Maratona. Isto é uma prova que depois de fazer ou se adora ou se odeia.
No regresso a casa foi altura de contar todas as 1001 histórias de quem viveu a prova por dentro e por fora. Foi altura de rir com muito do que foi escrito por quem nos acompanhou, foi altura de começar a ver fotos e tempos de muitos amigos. E reacções e comentários e mensagens de parabéns. Foi altura de recordar os bons e maus momentos que ficarão para sempre guardados na nossa mente.
Tenho a certeza que já me lembrei e esqueci de muitos detalhes com que vos iria continuar a aborrecer e que prolongariam este texto até à Maratona de 2018 - ou pelo menos até à abertura das inscrições. Por falar nisso, já nos podemos voltar a inscrever? Eu não sei se ele vai voltar a repetir uma Maratona. Aceitou o desafio para esta mas não é a praia dele. No meu caso não tenho dúvidas que voltarei a estar na linha de partida, corrigindo erros do passado e aceitando que nem sempre a preparação corre como nós gostaríamos mas sempre com a certeza de correr feliz durante a maior parte da prova e de terminar orgulhoso do que farei independentemente do que marcar o relógio.
Desculpem, acho que falhei a promessa que fiz em 2016 de não escrever tanto na Maratona seguinte.
Seguem-se uns dias de recuperação activa que já incluíram subir até ao 5º andar do escritório onde trabalho por problemas nos elevadores e uma boa caminhada depois do trabalho por problemas da Carris. O regresso aos treinos está marcado para 5a feira. O regresso à escrita está marcado para breve com uma pequena curiosidade - ou mais se me lembrar entretanto - sobre a Maratona. Lembram-se da Lúcia que tenho encontrado nas Running Wonders? Pois.
Próxima paragem: Meia Maratona de Évora, dia 26 de Novembro!
Prova nº 70 - Maratona do Porto - 42km - 4:40:34